quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

RECORDANDO...

"UM PINTOR FAZ AQUILO QUE TEM LÁ DENTRO"

Reproduzo aqui uma frase da saudosa Dª Maria Luísa Afonso, minha professora de Desenho na EICL, infelizmente já falecida, que recordo com muito carinho e ternura. Com a devida vénia transcrevo aqui excertos de um artigo que lhe foi dedicado num jornal português:

"Portugal é um país pequeno, onde felizmente abundam (uma vezes estimulados, outras não) os bons valores nas artes plásticas”.
É o caso de Maria Luísa Pereira Coutinho Afonso. Nasceu em Vila Nova de Gaia em 1923, onde mais tarde viria a frequentar o curso de Pintura na Escola de Belas Artes do Porto, de 1939 a 1950. A sua primeira exposição acontece em 1954, já no Lobito, para onde a pintora mudara residência. Três anos depois volta a expor a convite da Câmara Municipal do Lobito. Ainda em Dezembro do mesmo ano, realiza a sua terceira exposição individual em Nova Lisboa.
Participa posteriormente no I Salão de Artes Plásticas onde lhe é atribuída a Medalha de Honra da cidade do Lobito.

Maria Luísa Afonso reintegra-se no Ensino Técnicoprofissional e mantém a sua função como professora até 1975.

Depois do seu regresso a Portugal, volta a expor, mas no Casino Estoril. Posteriormente expõe na Figueira da Foz, em Vizela, em Leiria. Em 1980, 81 e 82 volta ao Casino. Em Julho de 1983 expõe no Hotel Júpiter na Praia da Rocha - no Algarve.

Na simplicidade que lhe é (era) peculiar Maria Luísa Afonso "auto-biografou-se": "Dei por mim a pintar desde muito cedo. Foi um parente de meu pai, que me estimulou a ir para as Belas Artes. Vivi sempre a par da pintura mesmo durante o tempo em que dei aulas de Formação Feminina - vinte e tal anos. Comecei a leccionar em 1947. Quando nasceram os meus filhos, parei durante alguns anos. Penso que África me influenciou. Tenho uma tendência grande para o contraste. Fiz muitos trabalhos retratando cenas da vida africana. Vendi uns e dei muitos outros. Tenho saudades de África. Lá cresceram e se formaram os meus filhos. Passei lá os melhores anos da minha vida".

Descanse em paz Professora Maria Luisa… SERÁ SEMPRE RECORDADA COM MUITO CARINHO!

(Postado por António Costa)

OS ERROS PAGAM-SE...

Os filósofos, na generalidade – fundamentados e apoiados na racionalidade na metafísica de Aristóteles -, confessam-se, em conformidade comigo, cépticos com respeito aos acontecimentos do acaso e da coincidência ocasionais. Para mim, as enfermidades (disfunções orgânicas e outros males somáticos e psicasténicos, tal como todo o tipo de maleitas) têm origem na genética, nas malformações congénitas e, sem dúvida alguma, nos comportamentos inadequados, ou impróprios, excessivos no decurso da vida ou, seja, ao longo dos anos. A finalidade da medicina não é curar mas, sim, prevenir e evitar as doenças.

Deveria ser, particularmente, profiláctica, em vez de terapêutica. Eu tenho consciência de que negligenciei, menosprezei e maltratei os meus olhos; por isso, o génio do mal castigou-me, privando-me do mais precioso bem que tive – a visão – para o desempenho, com a máxima eficácia, da minha cada dia mais difícil porém nobilíssima profissão e para continuar a realizar-me, transmitindo os conhecimentos, mais úteis e indispensáveis, a inúmeros jovens e menos jovens, preparando-os para um futuro estável, risonho e, confiantemente, compensador. Não conseguiu, todavia, confiscar-me, afectar-me nem, minimamente, beliscar-me as faculdades mentais e intelectuais. A fim de mostrar e provar a sua omnipotência, Esculápio (lat). Asclépio (gr), o deus da medicina – para contrariar, travar e desapoderar aquele malvado e acintoso espírito - predestinou-me, em boa hora, um reputado oftalmologista que, com superior competência, distinto e incontestável profissionalismo e exemplares zelo e dedicação, me mantêm uma visãozinha periférica que, ainda, permite movimentar-me, com menor ou maior dificuldade, dentro e fora de casa. Durante mais de três anos, não li nem escrevi, uma única palavra. Mesmo assim, continuei a ditar, de cor, os meus artigos (espelhando a actualidade), com igual regularidade.

Graças aos mais elevados sentimento, sensibilidade, humanidade e generosa influência – por necessidade urgente, inimpediante e inadiável – do meu oftalmologista e à boa, receptível, benéfica e filantrópica vontade duma médica de subvisão, frequentei um tirocínio prático, de leitura e escrita, no aparelho (leitor de caracteres), orientado por uma muito digna, bem preparada, prestimosa e abnegada técnica de subvisão que ministrou com inquestionável mestria e proveitosa pedagogia.

Suponho que a ablepsia, que atacou a minha vista, foi, porventura, provocada pelo profundo respeito que, sempre, consagrei aos meus alunos, comprometendo-me, a mim próprio, a entregar-lhes os “pontos”, corrigidos, na aula seguinte. Orgulho-me por ter cumprido, escrupulosa e infalivelmente, essa obrigação.

Para consegui-lo, passei, incontáveis noites, sem me deitar, a emendá-los. Estou a sofrer as consequências; contudo, não me arrependo; constantemente, pus a minha função acima de tudo.

Devido ao avanço da tecnologia, adquiri um utensílio – análogo àquele em que treinei – no qual manuscrevo e leio, com mais ou menos dificuldade, demorando horas a executar, e ver, um trabalho correspondente ao que, antes, gastava a fazer, apenas, nuns minutos. Com a chegada deste instrumento, entrou, também, a felicidade, quase absoluta nesta casa. Cuidem-se. Lembrem-se de que as coisas não acontecem, só, aos outros… Pensem bem e aproveitem este conselho, emanado do meu âmago.
 (Professor na EICL)

"RUSSO" - UM BURRO DIFERENTE

Chamávamos-lhe “Russo”. Pequenote, traquinas. Nervoso, de pêlo cinza escuro, quase preto, com farrapos de branco, atirados, ao acaso, por todo o corpo, pêlo ali, pêlo além, não tinha o ar humilde e pachorrento, não despertava aquele misto de ternura e carinho que se tem pelos animais da sua espécie. Era altivo e além dessa diferença, era ainda mais diferente – este era o “Russo”, o nosso burro.

Só me lembro dele calmo e satisfeito a caminho da “dopaio”, quando à sombra dum castanheiro e de uma nogueira parava e comia do chão térreo, uma maçã caída do arreto do tio António Cacha. Voltava a passar por ali e tudo se repetia, preciso era haver maçãs, uma que fosse. Depois uma espuma branca, saindo-lhe de entre os beiços, besuntava-lhe positivamente toda a zona do focinho. Saboreava quieto, manso, indiferente ao miúdo que em cima dele o incitava a retomar a caminhada. “Arre burro… arre”! Ficava impávido. O pequeno dono, sobre o seu dorso, mostrando pressa e desespero não o amedrontava. Por onde andaria o dono grande, que este sim, com o seu sacho ao ombro, lhe inspirava receio? Naquele dia tinha atalhado por outros caminhos, que não de burro e já estaria ao fundo do prado do tio Joaquim, à espera. Que esperasse, ele, o “Russo” tinha a sua postura e não se importava o agradar a alguém. Quem tinha pressa fosse indo.

Ao entrar no “dopaio”, naquele pequeno declive ao lado da casa e do pequeno castanheiro que nunca deixavam que ele roesse, farto do miúdo sempre a escorregar-lhe pelo pescoço, para celebrar o fim da caminhada, dava dois pinotes, pinotes de burro pequeno, mas pinotes. O miúdo por certo iria ao chão, ficaria então mais leve, que o peso embora pouco era peso, carago.

Gostava de pregar partidas ao fedelho, lá isso gostava. Um dia, o dono grande foi à volta, como tantas vezes costumava fazer, a cavalo, ou melhor, a burro, ia o miúdo com um molho de canas de milho, atravessado sobre a albarda. Era um bom petisco para o “Russo”, que, apercebendo-se do que levava, ia deitando o olho arregalado, guloso, para o molho. Não devia ser difícil, virando um pouco mais o focinho, apanhar, dum lado ou doutro, uma cana mais comprida ou mais descaída e puxar. Mas o pequeno apercebeu-se da manobra, deitou as duas mãos às canas e segurou melhor. O burro teimou, puxou e o fedelho, agarrado ao molho, tombou.

O “Russo” calmo, com o jantar à sua disposição, olhava vitorioso o miúdo que sacudia a roupa suja de terra e com o dedo molhado em cuspo, limpava uma esfoladela num joelho. O dono, o do sacho, farto de estar à espera, acabou por aparecer e, furioso, logo ali ajustou contas. Coitado do “Russo”, apanhou e apanhou bem!

Isto fica entre nós, não se diz nada à mãe”. O miúdo, eu, ouvi e cumpri. À mãe não disse nada, se calhar não por acaso, o meu pai tinha assuntos a tratar e foi a mãe que acomodou o burro. O palheiro era perto de casa, atravessava-se a rua e ao fundo, num pequeno largo, vivia o “Russo”.

A minha mãe não tardou a regressar – “o burro não está bem, tem a manjedoura cheia, não comeu nada. Vou chamar o meu pai”.

O avô, que na opinião das gentes da aldeia e arredores, tudo sabia, chegou e eu acompanhei-o (adorava estar com o meu avô) e fomos ver o “Russo”.

Isto aqui houve coisa… tu não sabes nada?”. Eu só tinha prometido não contar à mãe, mas ao avô?!...

Voltámos a casa e o avô não entrou em pormenores. “Aquilo passa, só precisa tempo, não é nada”.

O “Russo”, parece-me, não voltou a apanhar e breve saiu da nossa vida. Foi vendido e o seu lugar ocupado por uma burra castanha, com um risco castanho mais escuro, como que um colar, que do cimo do pescoço, lho contornava. Era vistosa, bonita, muito mansa, maior que o “Russo”, paciente com as nossas brincadeiras à sua volta, até mesmo quando passávamos por baixo dela e a víamos a espreitar do outro lado a nossa aparição.

Eu não voltei a ver o “Russo”. Vivia longe, numa quinta nas faldas da serra de baixo, perto da Quinta das Bugalhas, frente às “barreiras” da minha tia Conceição. E enquanto a minha irmã, com os seus dois ou três anos, embrulhada num avental, esperava que a sua roupa secasse, pois ao fazer pastéis de terra amassados com água, ficara suja, o “Russo” lá ao longe zurrava. Como é que aquele diabo lá de tão longe sabia que eu estava ali?! Como conseguia? Mas lá saber, sabia e queria continuar a aborrecer-me. “Raios te partam, burro dum raio! Não ires tu para os infernos carregado de estrume!” E com este desabafo, para os meus cinco anos, era uma excelente vingança. Sentia-me pago pelas muitas vezes que, voluntariamente, pensava eu, o “Russo” me fizera sentir, num repente, a dureza dos caminhos.

(Professor na EICL e EP Afonso Henriques)

UMA QUESTÃO DE VOCAÇÃO

Maria José Candeias Esteves Barreto nasceu em Lisboa a 29 de Fevereiro de 1940. Filha de um famoso relojoeiro lisboeta ingressou, aos 12 anos de idade, na Escola de Artes Decorativas António Arroyo. Sempre muito solicitada, ainda na Escola Primária, sobretudo por professores, anuía de bom grado. Na dúvida sobre “O que queres seguir?” a sua professora de Desenho, D. Cristina pediu-lhe, um dia, que viesse com a mãe à escola. Em jeito de curiosidade - sem nunca ter estado em África - fez um trabalho em cortiça retratando o Continente Africano. Aconselhada que foi a mãe no sentido de a deixar seguir Artes, ei-la na António Arroyo no Curso de Pintura (ela preferia Arquitectura mas…a Matemática! Escola famosa e exigente, as aulas iam das 8 às 19 h. Foi aluna dos mestres Abel Manta, Senna da Silva e Cargaleiro. Estudou arte e design, cerâmica, desenho figurativo. Entretanto estudava Teatro com António M. Couto Viana que orientava o grupo da Igreja da Penha de França, em cujo Coro também cantava. Após o Curso trabalhou no gabinete gráfico da Neocel em Cabo Ruivo e em 1958 foi leccionar na Marinha Grande. É evidente que jamais voltou a pensar em Arquitetura até porque os Mestres não a deixaram ir. Em boa hora, diga-se. Conheceu, entretanto, o futuro marido, casou e foram viver para Moçambique, onde ele estava destacado em Vila Cabral. Daí mudaram-se para Tete. Não tendo quem o substituísse, o marido continuou, Mª José regressou a Portugal e concorreu para Gouveia, onde lecionou nos Cursos de Formação Feminina e Serralharia durante dois anos. Em 1965, finda a comissão do marido, voltou ao Lobito, que já conhecia da viagem para o Índico e que nunca esquecera. A cidade-jardim esperava-a. Dois anos no L.A.L.A e, finalmente, a Escola Preparatória Afonso Henriques.  Apresentamos a seguir algumas das obras da nossa associada e fotos de uma exposição que realizou.

(Texto de Sílvia Vieira)

desalento

Mulher à janela

        

KITANDA (*)

Lá de cima, via-se todo o panorama. Os botequins no sopé do morro, com muito movimento e onde todo o tipo de comércio se fazia. As lojas estavam cheias e os brancos, que vendiam, falavam a língua nativa que ajudava a convencer! A fuba, o chipoque, o pungo, os cambriquite, o sabão macaco, o óleo de palma, a jinguba, as farinha de mandioca com açúcar, os pano, também os petróleo para acender nos candeeiro, tudo dava para ganhar.
Em frente, as kitandeiras expunham os seus produtos nas bancas, colocados no chão. Nas terças e sábados, o movimento era muito porque era dia de kitanda.
Peixe seco, feijão macunde, quiabos, beringelas, batata doce e sua rama, maboque e loengos, rodelas de banana seca, dendém, fuba para fazer pirão e matete, massaroca, mandioca, gindungo, quissângua e até massambala! Também cachipembe que estava escondida e só era vendida se os sipaios não estavam à vista.
Também tinham criação, guardada na muhamba (grade feita em verga para transporte de galinhas) que de bico aberto e ofegante, esperava por novos donos.
Quase tudo era trazido das lavras e chitacas das margens do Catumbela. O pescoço suportava a quinda, de palha entrelaçada, pintada com as cores da esperança.
O peixe era bom. Era de Angola… Peixe-galo, peixe-espada, cachucho, garoupa, corvina, pescada… e as peixeiras repetiam, alegremente, os seus cantares, anunciando que o peixe era fresco e os angolares… poucos! As senhoras compravam.
Tudo se passava com um calor abrasador.
Um pouco mais afastado, à sombra de um tamarineiro, encontrava-se o costureiro Tonito Luquessi que dava ao pedal na sua Oliva antiga, comprada em segunda mão, à espera de freguesia para ganhar a vida. Fazia remendos com rapidez.
D. Zita de meia idade e avantajada, sentava o seu peso no Banco de bimba. Vestida de quimono de cores garridas e o seu lenço na cabeça a condizer, fumava cigarrilha, com o fogo virado para dentro, enquanto esfumaçava com o fumo.
Vendia cabaças e missangas.
Os cafecos de mamas espetadas, queriam comprar missangas. Então D. Zita explicava que os colares podiam ser usados no pescoço, pulsos ou tornozelos mas, se queriam dar nas vistas, podiam usar no braço, a meio palmo do sovaco.
D. Ximena, sua vizinha na kitanda, que de espampanante não tinha nada, não usava quimono nem vestido. Usava também cores garridas, mas nos panos que a vestiam a ela e ao filhote, que carregava nas costas. Vendia rama de batata-doce, rama de mandioca e também tomates cambuta. Não dava para fazer salada mas misturados com qualquer rama, dava sempre bom conduto.
Uma ou outra bengalinha cantava. Embora na gaiola apertada, na companhia de outros pássaros, embelezava o ambiente, respondendo ao caviro que à desgarrada replicava!
Debaixo das velhas gajageiras, meninos negros de carapinha poeirenta, brincavam com os seus carros de arame que, por vezes, empenavam. Outros roíam o catendo, duro de mais para o dente. Poucos, chupavam chupa-chupas comprados na venda do Senhor Manuel “Pestana” e que os amigos também provavam.
Zeferino, o miúdo que gostava de arranjar makas chutou a bola para a kitanda e logo foi ameaçado de "chicusso" por muita gente.
Zito, que não gostava de confusões, assoprava na gaita e produzia sons monocórdicos, que cansavam toda a gente.
A Fábrica da A.C.I.C., ali tão perto, mostrava progresso e fazia óleo de rícino, cujo cheiro escondia outros cheiros.
Na outra ponta da Vila, a fábrica da S.A.C. produzia açúcar e perfumava a terra com o cheiro do melaço.
Ainda lá de cima, via-se o sapateiro Marcolino que, sentado na esteira à frente da cubata, punha meias solas nos sapatos “dos minino que morava lá na vila perto da loja do Senhor J. Amaral”.
Com as missangas na mão, as meninas perguntavam como as haviam de usar. Havia tantas cores! O verde, vermelho, amarelo, azul e também… o preto, branco e castanho… difíceis de combinar.
D. Zita aconselhou que fossem ao Senhor Mestre Pensador porque ele de certeza que sabia.
Talvez!"




(*)Extraído do Livro “ÁFRICA, MAGIA DE MUNDOS DIFERENTES” de Joaquim Pedro Sousa, Aluno da ECL )
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