domingo, 26 de dezembro de 2010

PERCURSO DE VIDA DE UMA DOCENTE

Filha de um autêntico “globetrotter” do ensino, Sílvia Vieira foi contratada em Julho de 1963 para lecionar as disciplinas de Português, Francês e História do Ciclo Preparatório e do Curso Geral do Comércio na Escola Industrial e Comercial do Lobito e na Escola Preparatória Afonso Henriques. Desde cedo se destacou pela irreverência, própria da sua juventude, o que lhe acarretou alguns “amargos de boca”, com os quais lidou com alguma indiferença. A sua beleza também não passou despercebida o que, aliado ao facto de, durante alguns meses utilizar uma scooter branca como meio de transporte (uma mistura explosiva convenhamos), porque não podia, por razões de saúde usar outro, fizeram com que dificilmente fosse indiferente à sociedade lobitanga, à época pouco recetiva a ”tantos modernismos”. Alguns dos seus alunos dão destaque à forma interativa como lecionava, fugindo um pouco aos padrões pré-estabelecidos, mas que se traduzia em resultados positivos na transmissão dos conhecimentos. E recordam-na com carinho e devoção, como tivemos oportunidade de constatar neste último convívio.
Ficámos a saber um pouco mais do percurso de vida profissional desta professora, numa conversa amena, num fim de tarde numa esplanada da cidade de Póvoa de Varzim onde se encontrava de férias.

P: Como se deu a sua ida para o Lobito?
R: Meu pai, que lecionava a disciplina de Físico-Química, havia sido colocado em Nova Lisboa (Huambo) e, a exemplo de outras situações, a família acompanhou-o nessa “peregrinação”. O mesmo havia sucedido quanto aos Açores, Madeira e Cabo Verde. Foi, aliás, em Cabo Verde que, apenas com o Curso Complementar dos Liceus (7º ano, alínea D, Histórico-Filosóficas), iniciei a carreira docente. Tinha 19 anos. Era Reitor do Liceu Gil Eanes em S. Vicente, o autor de “Chiquinho” Baltazar Lopes. No ano seguinte, nos Açores, adoeci gravemente e só consegui que me tratassem 5 anos depois, no Lobito. Só recuperei totalmente em 1972 mas perdi um rim. Seguiu-se a Madeira onde lecionei durante 2 anos na Escola Francisco Franco (creio) no Funchal. Por sinal ocorreu aí um episódio”estranho”: num desses 2 anos faltou um professor de Matemática no Ciclo Preparatório e fui eu “tapar o buraco”. No final do ano, após os exames dos meus alunos, recebi a classificação de “suficiente”; abordei o diretor da escola que, para espanto meu, me disse que isso se devia não ao trabalho feito com resultados à vista, mas, ao facto de eu ter lecionado numa área que não era a minha. Comentários para quê?
Em 1962 vamos para Nova Lisboa (Huambo) e em 1963 sou colocada no Lobito. Data desse tempo a publicação de um livrinho, muito incipiente, editado pela Editora Imbomdeiro, “Três histórias de amor”.
Ainda éramos sete em “peregrinação” mas já separados. Voltei à Madeira onde, à falta de colocação como docente, me entretive a pintar algumas aguarelas da Ilha que uma casa vendia aos turistas e a dar explicações avulsas, inclusive a alunos do meu pai. Era um professor “à moda antiga” que poderia ter ido mais longe se não fosse um problema de saúde irreversível. Dizia ele ”que era tudo uma questão de Português”, ou seja, não se compadecia com a iliteracia. Talvez por isso eu tenha conseguido que alguns dos meus explicandos, seus alunos, triunfassem em Físico-Química. Paradoxalmente, a minha “forma de estar”no ensino era diferente, mais “jovem, moderna” e, recordo-me de uma referência a isso, feita no jornal ”Comércio do Funchal” (não estou bem certa do nome) pelo (então) jovem jornalista Vicente Jorge Silva.
Em 1968 regresso, só eu, a Angola e sou contratada para lecionar no Lobito, onde permaneci até meados de 1972. Nesse período ainda trabalhei um ano no Colégio das Doroteias onde reencontrei duas Madres do colégio que frequentara em Viseu.

P: E do Lobito para onde foi?
R: Para Luanda. Ingressei na Faculdade de Letras, como voluntária (Letras funcionava no Lubango; as frequências eram feitas em Luanda e as orais, se fosse caso disso, no Lubango; felizmente só tive de fazer duas, porque detesto provas orais). Não terminei a Licenciatura porque se deu a independência de Angola e houve alterações, como era de prever.
Em Luanda fui colocada na Escola Preparatória D. João I, onde me mantive até 1976.Ainda me lembro bem de como foi vivido ali o 25 de Abril e suas consequências.

P: Deu-se o 25 de Abril e, consequentemente, o êxodo da grande maioria dos portugueses. Não se passou o mesmo consigo?
R: Não. Sempre fui uma idealista e, como professora de Português, acreditei que podia ser útil permanecendo em Angola, ensinando a língua oficial. Além disso, sempre me senti mais africana do que europeia. Não me perguntem por quê. Não sei responder, até hoje. Quem sabe, não é por isso que me sinto”desenraizada”, sobretudo longe do mar?
A minha “irreverência” também contribuiu para permanecer. E lá fiquei, como cooperante residente, a lecionar no Liceu Paulo Dias (hoje N’Gola Kiluanje) e na Escola Industrial de Luanda. Após o 11 de Novembro integrei a equipa que elaborou os primeiros manuais de Língua Portuguesa do 5º e 6º anos do Ciclo Preparatório, para os quais contribuí com seleção de textos e ilustrações. Ainda conservo um exemplar de cada. Depois passou a ser a Editora Sá da Costa, creio.
Fui convidada pele Secretaria de Estado da Cultura de Angola para ajudar na reestruturação dos Museus de História Natural, da Escravatura e Nacional de Antropologia, no tempo em que era Secretário de Estado da Cultura o poeta António Jacinto.
Passei depois para o Centro Nacional de Documentação e Investigação Histórica, como documentalista. Aprendi muito sobre Angola e adorei trabalhar neste Centro. Tinha um acervo extraordinário, desde fotos e imprensa da época relacionados com as campanhas de ocupação até aos códices dos governadores, registos de degredados; manuscritos recuperáveis que, penso, os Angolanos saberão aproveitar para escreverem a sua verdadeira História. Aliás, cheguei a fazer a cadeira de História de Angola. Lembro-me de ir para algumas das frequências debaixo de tiros de morteiro…
Acabei a lecionar as disciplinas de Português e Literatura Africana de Expressão Portuguesa no P.U.N.I.V. (Instituto Pré-Universitário de Luanda) para onde me mudei depois de sair do Centro. Tive sempre ótimas relações com os alunos, já não podendo dizer o mesmo do último Conselho Diretivo. Mas isso são “contas de outro rosário”, a que talvez um dia volte.
Em 1987, desvanecidos os ideais que me levaram a permanecer em Angola, mau grado todas as vicissitudes por que passei, regressei a Portugal onde continuei com Português e História, em diversos estabelecimentos de ensino, desde Lisboa até Barrancos, sempre com “a casa às costas” até 1996, porque as hipóteses de vínculo ao Ministério de Educação (ironia do destino) me passaram sempre ao lado. Na tentativa de melhorar a minha situação, fiz o estágio do 1º grupo, em regime de voluntariado, na Universidade Aberta, em 1992.
Depois de 1996 ainda concorri duas ou três vezes, mas como não fiquei colocada, desisti. Reformei-me só este ano, após 19 anos e 8 meses de docência, com uma pensão mínima (insignificante e insultuosa, acrescentamos nós) a que junto uma de sobrevivência por viuvez, após um longo processo burocrático para a conseguir, o que me vai dando para viver com a mesma dignidade que norteou a minha vida. Sou uma”sobrevivente”!

Ficou assim conhecido o “percurso de vida profissional”desta professora, que continua com a sua paixão pela pintura e desenho, jardinagem, e floricultura, fotografia e poesia.



Entrevista conduzida por António Costa

Este texto obedeceu às regras do Novo Acordo Ortográfico

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