quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

"RUSSO" - UM BURRO DIFERENTE

Chamávamos-lhe “Russo”. Pequenote, traquinas. Nervoso, de pêlo cinza escuro, quase preto, com farrapos de branco, atirados, ao acaso, por todo o corpo, pêlo ali, pêlo além, não tinha o ar humilde e pachorrento, não despertava aquele misto de ternura e carinho que se tem pelos animais da sua espécie. Era altivo e além dessa diferença, era ainda mais diferente – este era o “Russo”, o nosso burro.

Só me lembro dele calmo e satisfeito a caminho da “dopaio”, quando à sombra dum castanheiro e de uma nogueira parava e comia do chão térreo, uma maçã caída do arreto do tio António Cacha. Voltava a passar por ali e tudo se repetia, preciso era haver maçãs, uma que fosse. Depois uma espuma branca, saindo-lhe de entre os beiços, besuntava-lhe positivamente toda a zona do focinho. Saboreava quieto, manso, indiferente ao miúdo que em cima dele o incitava a retomar a caminhada. “Arre burro… arre”! Ficava impávido. O pequeno dono, sobre o seu dorso, mostrando pressa e desespero não o amedrontava. Por onde andaria o dono grande, que este sim, com o seu sacho ao ombro, lhe inspirava receio? Naquele dia tinha atalhado por outros caminhos, que não de burro e já estaria ao fundo do prado do tio Joaquim, à espera. Que esperasse, ele, o “Russo” tinha a sua postura e não se importava o agradar a alguém. Quem tinha pressa fosse indo.

Ao entrar no “dopaio”, naquele pequeno declive ao lado da casa e do pequeno castanheiro que nunca deixavam que ele roesse, farto do miúdo sempre a escorregar-lhe pelo pescoço, para celebrar o fim da caminhada, dava dois pinotes, pinotes de burro pequeno, mas pinotes. O miúdo por certo iria ao chão, ficaria então mais leve, que o peso embora pouco era peso, carago.

Gostava de pregar partidas ao fedelho, lá isso gostava. Um dia, o dono grande foi à volta, como tantas vezes costumava fazer, a cavalo, ou melhor, a burro, ia o miúdo com um molho de canas de milho, atravessado sobre a albarda. Era um bom petisco para o “Russo”, que, apercebendo-se do que levava, ia deitando o olho arregalado, guloso, para o molho. Não devia ser difícil, virando um pouco mais o focinho, apanhar, dum lado ou doutro, uma cana mais comprida ou mais descaída e puxar. Mas o pequeno apercebeu-se da manobra, deitou as duas mãos às canas e segurou melhor. O burro teimou, puxou e o fedelho, agarrado ao molho, tombou.

O “Russo” calmo, com o jantar à sua disposição, olhava vitorioso o miúdo que sacudia a roupa suja de terra e com o dedo molhado em cuspo, limpava uma esfoladela num joelho. O dono, o do sacho, farto de estar à espera, acabou por aparecer e, furioso, logo ali ajustou contas. Coitado do “Russo”, apanhou e apanhou bem!

Isto fica entre nós, não se diz nada à mãe”. O miúdo, eu, ouvi e cumpri. À mãe não disse nada, se calhar não por acaso, o meu pai tinha assuntos a tratar e foi a mãe que acomodou o burro. O palheiro era perto de casa, atravessava-se a rua e ao fundo, num pequeno largo, vivia o “Russo”.

A minha mãe não tardou a regressar – “o burro não está bem, tem a manjedoura cheia, não comeu nada. Vou chamar o meu pai”.

O avô, que na opinião das gentes da aldeia e arredores, tudo sabia, chegou e eu acompanhei-o (adorava estar com o meu avô) e fomos ver o “Russo”.

Isto aqui houve coisa… tu não sabes nada?”. Eu só tinha prometido não contar à mãe, mas ao avô?!...

Voltámos a casa e o avô não entrou em pormenores. “Aquilo passa, só precisa tempo, não é nada”.

O “Russo”, parece-me, não voltou a apanhar e breve saiu da nossa vida. Foi vendido e o seu lugar ocupado por uma burra castanha, com um risco castanho mais escuro, como que um colar, que do cimo do pescoço, lho contornava. Era vistosa, bonita, muito mansa, maior que o “Russo”, paciente com as nossas brincadeiras à sua volta, até mesmo quando passávamos por baixo dela e a víamos a espreitar do outro lado a nossa aparição.

Eu não voltei a ver o “Russo”. Vivia longe, numa quinta nas faldas da serra de baixo, perto da Quinta das Bugalhas, frente às “barreiras” da minha tia Conceição. E enquanto a minha irmã, com os seus dois ou três anos, embrulhada num avental, esperava que a sua roupa secasse, pois ao fazer pastéis de terra amassados com água, ficara suja, o “Russo” lá ao longe zurrava. Como é que aquele diabo lá de tão longe sabia que eu estava ali?! Como conseguia? Mas lá saber, sabia e queria continuar a aborrecer-me. “Raios te partam, burro dum raio! Não ires tu para os infernos carregado de estrume!” E com este desabafo, para os meus cinco anos, era uma excelente vingança. Sentia-me pago pelas muitas vezes que, voluntariamente, pensava eu, o “Russo” me fizera sentir, num repente, a dureza dos caminhos.

(Professor na EICL e EP Afonso Henriques)

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